A arte que se baste (Artes & Ecos, 2021)
Prefácio de José Castello:
Uma poesia que beira o silêncio. Que perfura a si mesma, em busca, muito além de si, de um corpo. O projeto de abandonar a linguagem leva o poeta, ainda, a persistir na linguagem. Não há saída. Agora, porém, a linguagem não é mais adorno, é coisa. A lembrança de Ionesco: “Nem tudo é indizível em palavras, apenas a verdade viva”.
Estamos retidos na língua. A poesia é esse salto que, ainda preso às palavras, luta para ultrapassá-las. Com esse espírito de luta, disposto a desafiar o impossível, escreve Celso Gutfreind. “O sujeito que diz oscila/ entre fraude e a verdade”, ele nos adverte. Tudo o que temos é essa alternância, essa perplexidade, essa vibração. Mais além, nada há.
A poesia de Celso vibra e nos faz vibrar. Nenhum conforto, nenhum relaxamento, nenhuma promessa. Calamos, paramos, respiramos, mas alguma coisa insiste em falar. Resta ao leitor acompanhar seus balbucios. “Estar junto é a única/ resposta que há no mundo”, ele anuncia. Também o poeta, que escreve na solidão, gosta quando o outro vibra a seu lado.
De um lado, a busca de uma “arte maior do que vida”. Uma arte para além da vida. A lembrança de João Cabral: “Não falar/ é forma de falar da coisa”. O silêncio também fala. Uma arte que se lança na vida é, da mesma forma, arte ainda.
Celso Gutfreind trafega pela linguagem sem pose e sem ilusões. Contesta os que “às vezes forçam a forma/ só para agradar o crítico”. Não se trata de adular, ou de enganar, mas de estar junto. O poeta conhece as limitações do faz – e, só porque conhece, continua a fazer. Admite: “Ao contrário do que dizem/ a arte me restringe”.
É tudo muito pouco. Esse quase nada, que beira o silêncio, é a poesia. Aferrado ao si mesmo, o poeta não se importa com as luzes e provocações da cena cultural. Não escreve para brilhar, escreve para ser. Conhece o terreno em que pisa. Sabe que todo o esforço, nas palavras de George Steiner, levará apenas “à praia do silêncio”. Essa praia é tudo. O silêncio é o princípio, mas é também o fim.
Durante a luta – seguindo as lições cabralinas – o poeta joga muitas palavras fora. Corta, corta, corta. O poeta é um lenhador. Cabral preferia falar no escultor que, depois de arrancar muitos nacos de sua pedra, vê – assombrado, como se não fosse sua – a arte surgir. Celso repete as palavras de Eugenio Montale: “Se salvarão algumas palavras imperecíveis”. Dizia-se que Montale era um “poeta hermético”. Só ele? Que outra coisa é a poesia, senão esse debruçar sobre um mundo lacrado?
Mais do que chegar à coisa, o poeta persegue a coisa. Tudo o que tem, no fim, é essa perseguição. Escreve Celso, com firmeza: “O artista busca/ a expressão do amor / mais que amor em si”. A poesia não tem objetivos. Não é pragmática, nem produtiva. Do esforço do poeta, leitor de si mesmo, quase nada fica. “E toda leitura/ é tarde demais”.
A poesia de Celso Gutfreind produz, no entanto, calafrios. Não porque seja assombrosa, ou fantástica, mas porque trabalha na nervura do real. Não é uma poesia “de resultados”. Não adere a escolas, a modas, ou a tendências. Tampouco se preocupa em ser clara ou, ao contrário, em ser obscura. Não se preocupa: se lança. Seu propósito, que nos arrebata, é dizer aquilo que não conseguimos dizer.
Sobra um balbuciar. Uma gagueira. Palavras que, trêmulas, agarram-se às páginas. Ali ficam como gotas de suor. O poeta chegou a muito pouco. Chegou a tudo. Eis a poesia.
José Castello
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R$ 37,00Preço
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