Na capa de um desses livrinhos de bolso sebosos, cuja lembrança refulge agora como um meteorito vindo de dentro deste Rapaz com cicatriz, de Escobar Nogueira, um cowboy maneja a pistola enquanto se defende de múltiplos tiros, percebidos pelos buracos de bala no fundo, às suas costas (cortiça, papelão, pano?). Há um detalhe, porém, para o qual atentou um amigo de infância: a julgar pelo formato dos furos, beiços voluptuosamente visíveis ao leitor, os tiros vinham das costas do cowboy. A sensação de equívoco, farsa e quase anamorfose desse exemplo, nos acompanha a todos, em maior ou menor grau, ao longo da vida. Mas é lá, no país da infância, que sua flauta é soprada pela primeira vez, e suspeito que muito dessa experiência se reitere em nossa insistência no poema, que, como se sabe, é quase nada e muito ao mesmo tempo, um estado e uma vivência, mas também pode ser uma vida nos abismos ou uma restauração ilusória do mundo ao redor. O poema e o mundo: coisas que somos capazes de compreender pobremente e a que só acedemos em brevíssimos relâmpagos de beleza e dor. E talvez o observador privilegiado desse diorama seja o menino ou o recém-jovem que, enfeitiçado pela vida que corre nas páginas de um Tex ou nas de O mundo perdido, corre também ele, divisando as pequenas delícias do porvir, catalogando as mínimas flores lindas do sexo, as maravilhas da língua dos bichos, usando como moeda dobrões e maravedis precários que vai pescando pelo caminho.
Territorializando o país da infância e da juventude, onde quem manda é Nuvem Vermelha ou o aluno sacana do padre Lauro Trevisan ou o guri que talha um coração de louca anatomia na classe, Rapaz com cicatriz também se vincula, em certas passagens (mas como que polinizando todo o conjunto) àquela tradição erótica que nos faz vislumbrar o vivente (no caso, um certo contabilista Ramilo Rocha) vestido com as armas e roupas de Aretino e de Bocage, no corpo a corpo com suas putas, na sua zona que não é só de carne, mas também de música e éter: “Quer provocar minha libido?/ Ponha música no teu gemido/ e bandeireia na minha orelha:/ Os aguapés dos aguaçais/ nos igapós dos Japurás”.
E a velha Fortaleza dos Valos, cidade natal do poeta, se transfigura nesta outra camada de território, palimpsesto de desejos e destinos que Rapaz com cicatriz descobre: é a Fortaleza onde o menino se espanta e fixa, com o pai, as pequeninas partículas do mundo: “Para meu pai/ a coisa mais linda do mundo/ é aquela nuvem de poeira que se/ forma/ atrás de um trator lavrando a/ lavoura./ Sinto o gosto da terra/ quando ele fala dessa nuvem.”
- aquele cowboy errático, que sabe que alguns tiros podem matá-lo, porque disparados pelas costas, “tu que te achas vivo”, meu igual, meu irmão, toma aqui nessas páginas aquilo que assalta o poeta, monstro delicado que conduz, nessa vida em quase tudo tão mesquinha, qual elmo de lata, qual ouriço magnético, dísticos tão distintos quanto este: “minha tática é perder a técnica/ Minha estratégia é perder por pontos”.
Marco de Menezes